O cenário do mercado de saúde suplementar tem se demonstrado bastante desafiador para todos nos últimos anos, seja com o crescimento da desarmonia entre as decisões no âmbito regulatório e no Judiciário, fomentando cada vez mais judicializações, seja com a mais recente alteração legislativa que, em resumo, possibilita acesso à cobertura não prevista no “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde” estipulado pela ANS.
Tais fatos trazem à tona uma reflexão importantíssima sobre o papel de uma Agência Reguladora que, em especial, deve promover o interesse público em geral (consumidores e operadoras de planos de saúde) e, também, quanto à sua atuação, já que sua natureza é caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica e pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira.
Sob esses aspectos, um ponto que merece destaque foi a publicação da Lei n° 13.848/2019 (Lei das Agências Reguladoras) e da Lei n° 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), que estabeleceram a obrigatoriedade de uma Análise do Impacto Regulatório (AIR) antes de quaisquer propostas de edição e alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços, o que já indica que o processo decisório/normativo deve ser realizado de forma fundamentada, buscando previamente uma avaliação com viés técnico, prevendo os eventuais impactos no setor a cada norma editada.
Inclusive, a Lei das Agências Reguladoras trouxe novas exigências de disponibilização de informações e prazos para realização de Consultas e Audiências Públicas, ratificando a necessidade ampliar ainda mais a transparência na participação social, lembrando que a ANS já adotava práticas similares desde o ano de 2010, com a RN nº 242/2010 (revogada pela RN nº 548/2022).
Ademais, com a edição do Decreto nº 10.411/2020 restou também estabelecido o conteúdo, a metodologia da Análise de impacto regulatório, os quesitos mínimos a serem objeto de exame, as hipóteses em que será obrigatória sua realização e as hipóteses em que poderá ser dispensada, bem como a publicação dos Relatórios de AIR realizados pela ANS, ressalvadas as informações com restrição de acesso nos termos da Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação).
Alinhado a isso, o processo de Análise de Impacto Regulatório (AIR) e da Participação social (PS) foi regulamentado pela ANS, por meio da RN nº 548/2022, contribuindo para o aperfeiçoamento da regulação em saúde suplementar com base em evidências e com mais transparência e diálogo entre as partes interessadas, imprimindo mais segurança para o mercado e para a própria Agência, que consegue ter uma visão mais ampla dos impactos das medidas a serem implementadas.
Cabe reforçar, ainda que, tendo em vista que a AIR é uma avaliação que precede à edição/alteração de atos normativos, a RN nº 548/2022 também instituiu a Análise de Resultado Regulatório (ARR) que é uma “verificação dos efeitos decorrentes da edição de ato normativo, considerados o alcance dos objetivos originalmente pretendidos e os demais impactos observados sobre o mercado e a sociedade, em decorrência de sua implementação;”, já incluída pela ANS na Agenda Regulatória do triênio 2023-2025, com a finalidade de acompanhar os impactos decorrentes de eventuais alterações/edições.
Como pode ser constatado, o papel e a atuação da ANS são definidos de forma extremamente detalhada, em observância aos preceitos legais enquanto Agência Reguladora, utilizando-se de parâmetros de qualidade, de maneira que as tomadas de decisões sobre qualquer situação que careça de atuação regulatória, sejam precedidas de uma avaliação técnica e criteriosa, assegurando uma previsibilidade mais que necessária sobre os impactos no setor.
É notório que qualquer alteração normativa atinge de forma significativa a todos os envolvidos nessa cadeia (consumidores, operadoras de planos de saúde, prestadores de serviços), o que justifica a necessidade de uma avaliação por parte do órgão regulador dotado de conhecimento técnico para tanto. Afinal, sem que haja um equilíbrio nessas ações, será cada vez mais difícil para as operadoras sustentarem-se, o que afeta diretamente aos usuários de planos de saúde.
Não obstante à relevância da atuação da ANS, recentemente, foi apresentada uma proposta de Emenda nº 54 perante a Medida Provisória nº 1.154/2023 que, em suma, objetiva transferir a competência normativa das Agências Reguladoras Federais para Conselhos Externos, o que seria um imenso retrocesso nas políticas de regulação já alcançadas, ferindo além da independência administrativa, a autonomia financeira, decisória e política das Agências.
A aprovação dessa proposta causará uma grande instabilidade para todo o mercado de saúde suplementar, podendo afetar, não somente os cidadãos usuários de planos de saúde, mas inclusive, os colaboradores/profissionais que atuam em operadoras e nas demais empresas atuantes no setor, haja vista que a sustentabilidade dessa operação é pautada, também, na estabilidade regulatória garantida pela ANS. Lembrando que o setor contribui positivamente para a empregabilidade do país.
Por tais razões, ignorar a importância do papel desempenhado pela ANS, construído ao longo dos anos irá trazer consequências muito severas para todo o mercado, que dificilmente será mantido de forma estável, mediante tantas alterações legislativas, sem uma análise prévia que observe de fato critérios e avaliações técnicas do órgão regulador do setor.
Débora de Figueiredo Coelho
Especialista Jurídico
Gestão de Regulação e Atuarial
Data da notícia:
02/03/2023